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A man sleeping
Três da madrugada e a professora Lucicley Modesto de Moura já está de pé. O expediente na Escola Municipal João Esperidião dos Santos, na cidade de Magé, Rio de Janeiro, só começa às sete, mas ela não consegue dormir. Vai arrumar o armário, mudar um móvel de lugar, brincar com o cachorro, porque não consegue dormir. Em volta dela, todos parecem estar em sono profundo, mas ela não consegue dormir. Daqui a pouco o sol vai nascer e ela não consegue dormir. Faz 10 anos que Lucicley não sabe o significado de uma boa noite de sono. Naquela época, passava madrugadas em claro estudando para concluir o curso de Biologia. “Trabalhava de dia e frequentava as aulas à noite. Não tinha outro horário para estudar”, conta. “O sono foi se perdendo. Acho que meu corpo acostumou”.
Aos 40 anos, Lucicley conhece de cor todos os benefícios do sono para a saúde e compreende que dormir é uma função tão essencial para o organismo quanto comer ou beber água. Mas sofre com a insônia, distúrbio que afeta 40% dos brasileiros, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS). Hoje, ela dorme cerca de três horas por noite — isso, quando toma o medicamento aconselhado pelo neurologista. “Nos dias em que não tomo o remédio porque ele não deve ser tomado diariamente, o sono é apenas de uma horinha. Quase como um cochilo”, diz a professora, que apesar disso não chega a sentir cansaço ou fadiga durante o dia e vive uma rotina de trabalho e lazer sem grandes dificuldades de concentração. “Percebo que fico apenas um pouco mais agitada. Mas quando consultei um médico, foi exatamente por saber que não dormir não é normal”.

Especialistas apontam que o sono de qualidade melhora o equilíbrio físico, mental e emocional do ser humano, fortalece o sistema imunológico, ajuda a prevenir doenças e tem grande importância para o bom funcionamento do cérebro. De acordo com a pneumologista Luciana Palombini, são duas as funções principais do sono: o descanso do organismo e a preparação para o dia seguinte. “Quando dormimos, existe a limpeza de toxinas que são acumuladas durante o dia. Não é só descanso. O cérebro passa por um tipo de preparo para que a gente possa agir bem depois de acordado”, diz, ressaltando que estudos apontam ainda o grande potencial do sono para a preservação da memória. “Durante os estágios do sono, há uma organização da memória em que são descartadas as memórias menos úteis, digamos assim, para que haja uma reserva cerebral para conservação de outras”. Segundo Luciana, hoje a ciência considera que as toxinas acumuladas quando a pessoa não dorme podem aumentar o risco de demências.
Mas além disso, o sono é importante para a prevenção de doenças. Na professora de Magé, a insônia acarretou ansiedade e problemas de peso. Especialista em medicina do sono e integrante da equipe do Instituto do Sono, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a médica Luciana explica que o sistema de defesa do organismo é prejudicado quando o indivíduo dorme pouco ou mal e isso aumenta o risco de doenças, principalmente as cardiovasculares — hipertensão arterial, pressão alta, infarto, derrame cerebral — e as doenças metabólicas que incluem obesidade e diabetes.
Distúrbios do sono
Com base nas informações de uma pesquisa do Instituto do Sono que acompanha as consequências dos diferentes distúrbios do sono na população da cidade de São Paulo — e cujos resultados ainda estão em fase de avaliação de dados —, Luciana afirma que atualmente ocorre uma “epidemia do sono insuficiente”, com os paulistanos dormindo em média seis horas e meia durante a noite. A primeira parte do estudo (intitulado Episono) revela que 77% dos paulistanos sofrem de algum tipo de distúrbio do sono; 60% queixam-se de insônia — sendo 45% apenas queixa e 15% configurando transtorno de insônia; 41,7% roncam; 32,9% são portadores de apneia obstrutiva do sono; 24,3% têm pesadelos constantemente; e 9,3% sofrem com o bruxismo (ranger ou apertar os dentes).
No consultório de Luciana, as queixas mais frequentes são a insônia e a apneia — parada respiratória devido a obstrução das vias aéreas. Depois entram as parassonias que se referem aos comportamentos inadequados durante o sono, a exemplo do sonambulismo, terror noturno, sonilóquio e  paralisia noturna. “São fenômenos que podem estar ligados a um componente genético mas também existe uma tendência comportamental que, a partir de uma mudança de hábitos, pode gerar uma diminuição dos episódios”, diz Luciana, comprovando a tese de que a restrição do sono está relacionada tanto a fatores internos quanto externos. “A preocupação, o estresse ou mesmo um ambiente de sono barulhento ou luminoso também são responsáveis pela má qualidade do sono”. Entram nesse rol ainda, segundo ela, os distúrbios psicológicos, como a depressão, que também levam à falta de sono.
Homem sem sono
Some-se a isso o fato de a vida contemporânea favorecer o estado de alerta do corpo 24 horas por dia. Certa vez, o médico e pesquisador brasileiro Sergio Tufik, referência mundial nas pesquisas sobre o sono, assim explicou a mudança do ritmo biológico do homem moderno. Antigamente, o sol nascia e bloqueava a melatonina (hormônio que faz  a pessoa dormir). “Com a iluminação artificial tudo mudou. As pessoas podem trabalhar e se divertir à noite, isso sem falar na televisão, na internet e em todos os outros recursos disponíveis. A modernidade fez com que as pessoas passassem a dormir menos”, disse. Para Luciana, não há dúvidas de que o estilo de vida moderno está prejudicando o sono. Dormir com aparelhos eletrônicos como computadores e celulares ligados, atrapalha. Levar trabalho para a cama, também não ajuda. E recorrer à medicação estimulante para driblar o cansaço, a fim de dar conta das atividades durante o dia, é uma péssima ideia que causa dependência e traz efeitos colaterais.
Dormir pouco ou mal também pode ser sintoma da falta de tempo muito associada à vida urbana e circunstâncias de trabalho inadequadas. Para a medicina do sono, há um grupo de trabalhadores que merecem atenção especial: motoristas de ônibus profissionais, maquinistas de trem, pilotos de avião e trabalhadores noturnos. Na década de 90, um estudo do Instituto do Sono de São Paulo monitorou motoristas e trabalhadores por turno (aqueles que a cada dia trabalham em um horário ou sempre trabalham à noite). Ao entrevistar 400 motoristas, constatou que 16% relatavam que dormiam enquanto estavam dirigindo — em uma média de oito cochilos por viagem. Os dados alarmantes acabaram contribuindo para uma mudança na legislação e ajustes nas condições de trabalho. Hoje, entre os critérios para obtenção da Carteira Nacional de Habilitação de tipos C, D e E, está uma avaliação dos distúrbios de sono. A nova legislação do trânsito também limita o tempo para dirigir a 11 ou 12 horas, e estabelece, no mínimo, 11 horas de descanso entre um período de trabalho e outro.
Mas o que acontece no organismo quando dormimos? De onde vem o sono? Luciana explica que o primeiro estágio (cientificamente chamado de N1) corresponde à transição da vigília para o sono mais profundo, mas o organismo ainda se encontra em sono leve. Somente no estágio seguinte (N2), o cérebro se desconecta totalmente dos estímulos do mundo real. Depois disso, o indivíduo entra no estágio 3, ou N3, que é o momento do sono profundo ou sono de ondas lentas. “Durante esse estágio, que corresponde ao sono reparador, existe um descanso da atividade cerebral, ocorre a diminuição da frequência cardíaca e da pressão arterial e há um aumento da produção do hormônio do crescimento”, continua a médica.
O último estágio, conhecido como sono REM (do inglês, movimento rápido dos olhos), é a fase em que ocorrem os sonhos mais complexos e de maior significado emocional. Nesse estágio, a atividade cerebral é intensa levando a um estado que, de tão ativo, se assemelha à vigília. “A gente diz que é um outro estado de consciência”, continua Luciana. “Essa alternância que ocorre durante o sono de períodos de menos atividade cerebral com picos de muita atividade prepara o cérebro para o indivíduo estar física e emocionalmente bem durante o dia”.
Aprendendo a dormir
Cair nos braços de Morfeu — como se diz na expressão popular que remete ao deus grego que personifica os sonhos — não é tão simples. É comum ouvir que, para um sono tranquilo e reconfortante, são necessárias de sete a oito horas por noite. Ocorre que essa necessidade é individual e geneticamente determinada, assegura Luciana. Há os dormidores curtos que são mais resistentes à privação de sono e que, ao dormir por cinco ou seis horas, ficam bem. E existem aqueles que precisam de nove horas. A boa notícia é que é possível aprender a dormir bem.
Segundo Luciana, a insônia, por exemplo, já conta com um tratamento baseado na terapia cognitiva comportamental que aposta na mudança de hábitos, o que significa alterar o modo como a cabeça funciona para o sono. “É preciso ensinar o cérebro a relaxar antes de ir pra cama”, diz. Dentro da higiene do sono — que pode ser definida como um conjunto de regras gerais para garantir uma boa qualidade de sono — entram desde evitar o uso de eletrônicos e contar com ambiente pouco ruidoso e de baixa luminosidade até manter os horários mais regulares. Não é mito: alimentação leve ajuda; álcool e estimulantes atrapalham. E quanto aos exercícios físicos, eles também auxiliam mas o horário ideal para praticá-los vai variar de pessoa para pessoa. “Você não pode comparar o seu sono com o do vizinho”, acrescenta Luciana.
Mas o mais importante, assegura a especialista, é consultar o médico especializado. A polissonografia — exame que monitora os pacientes dormindo por uma noite é o método diagnóstico mais objetivo para a avaliação do sono e das variáveis fisiológicas. Luciana diz que, depois de diagnosticado o distúrbio, os tratamentos podem variar. No caso do ronco e apneia, por exemplo, pode envolver tratamento para perda de peso ou intervenção nasal, em alguns casos, cirurgia, e muito frequentemente, o uso de aparelhos ou máscaras durante o sono.
NO SUS
O SUS oferece tratamento integral para casos relacionados ao distúrbio do sono. À Radis, o Ministério da Saúde informa que o atendimento inicial é feito nas Unidades Básicas de Saúde e, quando necessário, o paciente é encaminhado para atendimento em uma unidade especializada. A polissonografia — que quantifica e qualifica o sono do paciente — pode ser feita no laboratório do sono em ambiente hospitalar ou em domicílio e registra, entre outras coisas, ronco, frequência de pulso, fluxo de ar, oxigenação, posição, esforço respiratório e eletrocardiograma.
Atualmente, o Brasil conta com 79 estabelecimentos que atendem pelo SUS e possuem serviços especializados em neurologia e neurocirurgia, com classificação da polissonografia. De acordo com o Ministério da Saúde, existem ainda outros 277 hospitais especializados que não possuem classificação do procedimento, mas que estão aptos a realizar os atendimentos necessários para tratar dos distúrbios do sono. Cabe aos estados e municípios identificar as necessidades de acordo com as regionalizações e disponibilizar a assistência diagnóstica e terapêutica necessárias.
 
FONTE: Fiocruz